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A tecnologia e a saúde mental

Autor: Derek S. Moreira

O desenvolvimento tecnológico trouxe consigo inúmeros facilitadores ao cotidiano. A comunicação, o acesso à informação e a velocidade para realizar quaisquer tipos de transação foram completamente revolucionados, em primeira instância, pela Internet e, após algumas décadas, pelo advento e democratização dos smartphones. Nossas formas de diversão também mudaram, com a evolução dos games em diversas plataformas, do pc aos consoles e celulares, bem como o início da era da realidade virtual. Todavia, tantos benefícios trouxeram consigo prejuízos a variados aspectos da vida humana, resultando na criação de novos paradigmas e diagnósticos que têm afetado cada vez mais pessoas, com diferentes graus de morbidade e comprometimento.

O cientista Miguel Nicolelis, em sua obra "Muito Além do Nosso Eu", entre outros assuntos, aborda a simbiose que tem se criado entre o homem e a tecnologia. De certa maneira, nossos gadgets podem ser considerados como extensões de nossos membros, trazendo diferentes possibilidades e paradigmas. Nossos cérebros e corpos, em conjunto com todo tipo de recurso tecnológico, realizam inúmeras tarefas que se tornam cada vez mais naturais, quanto maior a familiaridade e a frequência do uso. As possibilidades que podemos vislumbrar neste cenário são incríveis, porém, sob o ponto de vista da saúde mental, temos hoje, também, prejuízos graves para nosso desempenho. Tornamo-nos dependentes da tecnologia.

Sabe aquela sensação desesperadora de sair e, no meio do caminho, perceber que deixamos o celular em casa? Um misto de vulnerabilidade, impotência e desconexão com o mundo entra em cena e pode causar altíssimos graus de ansiedade e inquietação. Em virtude deste cenário ser cada vez mais comum, uma nova condição psiquiátrica foi criada para definí-lo: a nomofobia. A nomofobia, uma abreviação do inglês para "no-mobile phobia", é uma patologia em que há perda total  do poder de escolha diante do uso do celular. Não usar ou mesmo não portar o celular resulta em um sofrimento psíquico tamanho que pode causar sintomas físicos e mentais como aceleração do ritmo cardíaco, respiratório, pressão torácica, irritabilidade, distúrbios do sono, da concentração, entre outros. Além desses problemas, para fins diagnósticos, é importante identificar se há prejuízo em outros aspectos da vida da pessoa devido ao uso do celular. Quando fatores como a vida profissional, social ou relacionamentos familiares começam a sofrer impactos negativos, é possível que estejamos diante de uma relação patológica com o smartphone. 

As redes sociais, outro produto da democratização da tecnologia, apesar de seus inúmeros benefícios, também tem sido vista como um potencial causador e reforço de diversos prejuízos do ponto de vista psiquiátrico e psicológico. Apesar de aproximar quem está distante, as redes sociais, muitas vezes, causam um efeito de superficialização das relações e da comunicação. Com frequência, o contato entre os usuários fica restrito a "likes" e outras reações pré-determinadas pela interface do aplicativo, empobrecendo a profundidade do diálogo e resultando numa mecanização do convívio. Por outro lado, reforça um comportamento narcisista de busca constante por aprovação alheia, gerando excessos na exposição da vida pessoal e deterioração da privacidade, por vezes, com o objetivo de obter o reconhecimento de outros usuários, muitos com os quais sequer há contato fora do mundo virtual. O número de blogs, páginas e outros recursos de auto-exposição vem em aumento constante. O resultado tem sido um reforço de comportamentos neuróticos e obssessivos, com graves consequências para a saúde mental de inúmeros usuários.

A variedade de games disponível atualmente é inigualável. De todos os gêneros, como ação, suspense, terror, rpgs, esportes etc., é possível encontrar opções diferentes em qualquer tipo de plataforma virtual oferecida, dos smartphones aos computadores. Como resultado, hoje, surge um novo tipo de vício, incluído recentemente na Classificação Internacional de Doenças (CID) como mais um diagnóstico em saúde mental: "o distúrbio de games". É importante frisar que ser entusiasta ou mesmo fazer maratonas esporádicas não necessariamente representa um uso patológico destes recursos, todavia, quando o hábito afeta as demais áreas da vida da pessoa, deve-se pensar na existência de uma patologia. Quando há descontrole do tempo de jogo, restrição de repertório diário, gastos excessivos, prejuízo nos relacionamentos e na vida profissional e, em casos mais graves, até perda do auto-cuidado, com abdicação de necessidades básicas em função dos games, pode ser necessária uma intervenção médica e psicoterapêutica.

Em virtude do aumento do número de casos documentados dessas patologias, centros especializados de tratamento têm surgido, oferecendo abordagens específicas para essas condições. Em países como Coreia do Sul e Japão, até mesmo medidas governamentais já foram criadas, com o intuito de controlar o problema, por meio da restrição do período de acesso a plataformas de jogos online. Como opções terapêuticas, oferecem-se variadas abordagens da psicologia, com importante papel da Terapia Cognitiva-Comportamental, faz-se o controle ou o impedimento total do uso dos gadgets e da internet e, se necessário, medicações são utilizadas para controle dos sintomas e abordagem dos transtornos ansiosos, frequentemente envolvidos nestes casos. 

Apesar dos benefícios incontestáveis da revolução tecnológica, observamos, atualmente, um claro desequilíbrio no uso dos novos recursos criados. Ademais, o potencial de agravo de diversas condições psiquiátricas e psicológicas já existentes encontrou neste descontrole um combustível, resultando, inclusive, em novos diagnósticos. Diante dos novos paradigmas trazidos pela democratização dos games, da internet, dos smartphones e gadgets, torna-se imprescindível manter nossa autonomia perante a tecnologia, fazendo seu uso de maneira saudável e consciente. Devemos estar atentos a sinais e sintomas para, se necessário, buscar o tratamento precoce de um excesso, antes de sua conversão em doença de fato. Não devemos temer a teconologia e os avanços, mas deixá-las tornar nosso cotidiano mais fácil, prezando sempre pelo poder de escolha e pela manutenção da qualidade de vida.

Derek S. Moreira - Médico pela Universidade Estadual Paulista, é Médico Assistente da Casa de Saúde São João de Deus

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